Traduzir como travessia: o caráter hermético, xamânico e mágico da tradução

Semana passada aconteceu a nossa oficina Ler o Invisível, sobre Hermes, aqui vai um texto com reflexões que ainda estão ecoando por aqui:

Traduzir não é copiar sentidos. É atravessar limiares. Entre a língua de partida e a de chegada, a pessoa que traduz atua como hermeneuta, xamã e maga: negocia opostos, convoca memórias, cura confusões e faz cintilar cores escondidas no verbo. Na tradição antiga, Hermes, deus das passagens, das trocas e da linguagem, é patrono dessa arte. Seu caduceu, chamado de “arma irrepreensível da paz”, concentra o paradoxo essencial da tradução: transformar sem trair, converter conflito em entendimento.

Hermético, aqui, não significa fechado, mas dedicado à passagem entre mundos que não se tocam diretamente. Traduzir é levar uma mensagem viva de um domínio a outro preservando ressonância, ritmo e intenção. É técnica de mediação. Quando a palavra justa emerge, a guerra cede lugar ao acordo. O trabalho tradutório se torna diplomacia do sentido, ponte que sustenta diferenças sem achatá‑las.

Há também um aspecto xamânico: como psicopompo conduzindo almas, quem traduz conduz “almas de palavras” por passagens arriscadas. Há ida e volta, perda e ganho, risco e descoberta. A língua, como serpente, tanto pode ferir quanto curar. Uma tradução responsável ritualiza a escolha, encaminhando o sentido para o cuidado do comum e reduzindo ruídos sem empobrecer o mistério. O ápice desse rito aparece quando a ambiguidade se evidencia: a “venerável e terrível arma da língua”. Ambiguidade não é defeito; é potência. Traduzir é sustentar esse vértice e oferecer leitura que cure confusões sem apagar o enigma que dá vida ao texto.

Há, por fim, o caráter mágico. Os antigos chamavam de poikílos o multicolorido: aquilo que é bordado, variado, cheio de nuances. Traduzir é trabalhar esse poikílos, fazendo surgir as cores do pensamento, da voz e do mundo. Uma boa tradução não embranquece a experiência; borda a frase com brilhos, ecos e texturas. Como a cauda do pavão, a percepção se abre em muitas íris ao mesmo tempo. E quando o texto pede, a ambiguidade torna-se ápice de potência: mantêm‑se os significados possíveis sem perder a linha que guia a leitura.

Na prática, traduzir pede um método de travessia. Primeiro, compreensão literal; depois, decisão estética sobre o que priorizar: sentido, sonoridade, ritmo, imagem. Cada escolha é um feitiço que incide no corpo do texto. É preciso negociar paradoxos sem apagar nuance: arma e paz na mesma mão, terrível e venerável no mesmo verso. É preciso cuidar da ambiguidade, abrindo o campo de leituras sem abandonar quem atravessa com você. E é preciso tramar memória viva, convocando ancestralidades e diálogos entre tradições, deixando pontes, não atalhos.

Traduzir é, no fim, um exercício iniciático de escuta e presença. Entre línguas, aprendemos a ver e ouvir colorido, a negociar conflitos e a bordar o real com delicadeza. A cada encontro, um fio. A cada escuta, uma cor. A cada tradução, mais mundo no mundo.

Traduzir é, no fim, um exercício iniciático de escuta e presença.

Gostou do tema? A oficina Ler o Invisível sobre Hermes está gravada e disponível no Tíaso, a nossa comunidade EAD. Acesse aqui.

Vem viver isso ao vivo na próxima oficina Ler o Invisível. É um encontro acolhedor para estudar, traduzir e conversar. Você é nossa companhia ideal nessa travessia. 💫

Com amor, Bia, a Sibylla.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *