“Afinal a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente.
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas.
E toda a realidade é um excesso, uma violência.
Uma alucinação extraordinariamente nítida”
– Álvaro de Campos


Recentemente, tive a surpresa de me deparar com uma antiga e fascinante entrevista protagonizada pelo renomado ator Ian McKellen, na qual ele compartilhou suas perspicazes reflexões sobre o intrincado contraste entre atuar nos palcos teatrais e diante das câmeras cinematográficas. Sob os holofotes do entrevistador, McKellen foi instigado a dizer sobre como ele, com sua experiência, realizaria a representação de um personagem que fosse um péssimo ator, desencadeando, de forma orgânica, uma conversa que se desdobrou em direções imprevistas, focalizando a conscientização corporal como um componente crucial dessa análise.
Com maestria, McKellen delineia as nuances intrínsecas que demarcam o ato de representar nas duas esferas. Ele salienta que uma das distinções primordiais entre o teatro e o cinema reside no requisito essencial da consciência corporal. No palco, o ator se encontra compelido a permanecer em sintonia íntima com cada centímetro de seu corpo, em cada momento da performance. Esta necessidade surge da visão panorâmica da plateia, que absorve cada detalhe da cena e de seus elementos, exigindo uma presença física e mental completa.
Entretanto, no esfera do cinema, essa exigência se metamorfoseia. A câmera, com sua habilidade de focalizar minuciosamente partes específicas do corpo do ator, concede-lhe a liberdade de se desprender da obrigatoriedade de uma consciência corporal constante e total. O olhar do espectador, nesse contexto, assume o papel de regulador da consciência corporal, aliviando a pressão sobre o ator e permitindo uma performance mais fluida e natural. É uma interação simbiótica: o observador molda a consciência corporal que o ator internaliza.
Adentrando camadas mais profundas dessa discussão, faço uma ressalva crucial, que transcende os limites dos atores, sejam amadores ou profissionais. A conscientização plena do corpo e de sua ocupação do espaço não se limita meramente ao domínio do ator. Ela assume uma dimensão existencial, culminando em uma presença autêntica e plena no presente, por todo ser vivente e consciente de si. Ter consciência plena de seu corpo e do espaço que ele ocupa é existir plenamente no momento presente. E isso é Dionisio, o deus do Teatro! Atores, seus sacerdotes, são também sacerdotes da verdade! Essa é a potência de se encenar o que se representa de verdade!



Ian McKellen, no entanto, vai ainda mais além nessa discussão ao sugerir que a presença total do ator na performance não apenas representa a realidade, mas funde-se com ela. E a realidade, tal qual a moda, é efêmera e em constante evolução, moldada pelo contexto histórico da encenação. Os grandes atores do século XIX se distinguem dos ícones do século XX devido a um motivo central: a plateia e seu olhar regulador estão em contínua mutação. O fluxo do tempo e das tendências culturais molda essa visão, e a plateia se transforma como reflexo disso.
“Os modos da realidade mudam e a realidade é hoje completamente governada por essa coisa, a câmera, que pode chegar muito perto e pode especular o que está por trás de tudo. Tudo é ambíguo, tudo precisa ser especulado, tudo é sutil. E mesmo assim podemos não alcançar a verdade.” – Ian McKellen
Na nossa era atual, marcada pela onipresença do cinema, da televisão e, mais recentemente, das redes sociais, nosso olhar se moldou pelas lentes das câmeras. Resultante disso, a realidade assume uma faceta cada vez mais fragmentada, sutil e ambígua. A observação precisa e o discernimento se tornaram imperativos; nuances devem ser intuídas, e a busca pela verdade se ergue como um desafio monumental.



★ As imagens que ilustram o texto são cenas do filme O Globo de Prata, de Andrzej Żuławski, 1988.
★ Quem quiser ver a entrevista que inspirou esse texto, ela está aqui:
Fiquei com muita vontade de ver esse filme.
Aguardando mais postagens.